Espetacularização da morte e educação

WhatsApp Image 2023-03-30 at 14.05.21Mais um caso de ataque em escola acontece no Brasil, dessa vez vitimando a professora Elisabete Tenreiro e ferindo outras pessoas, ambas a golpe de faca. O responsável pelo ato desumano ocorrido no dia 27 de março de 2023 foi um adolescente de 13 anos de idade, estudante do oitavo ano do Ensino Fundamental da Escola Estadual Thomázia Montoro, na cidade de São Paulo/SP. Ele foi contido por docentes da escola, detido pela polícia e se encontra sob tutela da Fundação Casa, na capital paulista.

O fato é consequência drástica, dentre outras razões, dessa que podemos chamar de sociedade do espetáculo (DEBORD, 1997). Nossa sociedade está repleta de gente que espetaculariza fatos como esse e alimenta o desejo de reproduzi-lo. Se, para alguns, um ataque desses choca e entristece, para outros, ele acaba sendo é um espetáculo inspirador, uma realidade a ser multiplicada. Por que isso acontece?

O assassinato da professora Elisabete Tenreiro deve chamar a atenção da sociedade toda e, em especial, da educação. Precisamos levantar e discutir seriamente diversas questões. O que nossos estudantes aprendem nas escolas e universidades? Que tipo de antropologia tem permeado nossas práticas pedagógicas, nossos projetos formativos? E o que temos aprendido além dos muros formais da escola, ou seja, na educação cotidiana e difusa que recebemos na própria sociedade, em nossas famílias, nos diversos grupos e círculos formativos que frequentamos? Quais as forças e os impactos que uma educação humanista tem tido na luta contra a reprodução da barbárie desumanista em nossos dias? Temos consciência de que tudo isso, para o bom ou para o mau, é permeado de processos educacionais, de processos formativos?

Ora, a sociedade do espetáculo também ensina, também educa. A sociedade é um grande agente educativo. Fazer o mal a alguém também é algo que se aprende. Tanto a escola formal (educação formal) quanto a “escola” da vida cotidiana (educação informal e educação não formal) também pode desenvolver e ensinar uma pedagogia das pedras, uma pedagogia das facas, uma pedagogia das armas, do medo, da violência, ambas podem ensinar uma pedagogia de morte.

Nesse sentido, o ataque do dia 27 de março não pode jamais ser posto nas costas da escola, como que decorrente de um suposto fracasso da educação formal por ela mesma. O ambiente escolar oferece apenas uma parte da educabilidade que recebemos cotidianamente ao longo de toda nossa vida. Em geral, outras modalidades e outros lugares educacionais (família, grupos de convívio, redes sociais) podem exercer uma corrente de influência formativa e comportamental muito mais coercitiva que a escola formal.

Há uma cultura de morte, de banalização, de competitividade e de espetacularização do mal sendo ensinada cotidianamente às pessoas, contra a qual a educação formal nem sempre tem dado conta de vencer com seu projeto de cultura da vida, de cultura do respeito pela dignidade humana, de solidariedade interligada, de compaixão e de racionalidade aberta.

Escolas sucateadas; sistemático desmanche da universalização do acesso à educação de qualidade humanizada; foco numa pedagogia de preparação tecnicista para formar quadros úteis a uma lógica de trabalho refém do mercado economista; criminalização da criticidade nos espaços educacionais formais; transferência a docentes de uma carga desumana de responsabilidades institucionais para as quais não são formados para desenvolver, tais como de acompanhamento e gestão de conflitos psicológicos de estudantes, excesso de burocracia, de papelada e de aulas para preparar e ministrar; falta de políticas públicas de concreto amparo e efetivo respaldo pedagógico e psicopedagógico a docentes e discentes; tudo isso faz parte de uma complexa teia de relações que nos indicam caminhos para compreendermos que o fenômeno educacional é, de fato, decisivo para a transformação social, desde que compreendido de modo ampliado, que envolve evidentemente o espaço escolar formal, mas que vai necessariamente para além dele.

É importante que entendamos que não basta “investir em educação”. É preciso que se tenha claro em qual tipo de educação devemos investir, cientes do “para quê”, do “para quem”, do “como” e, especialmente, do “por que” ela educa, forma, prepara, conduz (MESSIAS, 2021). Aquele jovem que assassinou a professora e feriu outras pessoas não agiu por “falta de educação”. Ao contrário, ele agiu baseado em um tipo de educação que recebeu e que acolheu com mais força dentro dele, em detrimento de outros processos educacionais pelos quais também passou, mas não os acolheu como devia e que não tiveram a devida força para convencê-lo.

O ataque do dia 27 de março de 2023, somado a tantas incontáveis formas de violência e de morte que se multiplicam no Brasil e no mundo, nos coloca para pensar no fracasso de nossos projetos de paz, de nossas agendas societárias, de nossas perspectivas de sucesso, de nossas visões de ser humano e do lugar formativo que a educação tem ocupado em tudo isso. As violências múltiplas que temos visto, sofrido e, por vezes, reproduzido são facetas de uma guerra fratricida que é sempre um fracasso humano, uma dolorosa falência de um humanismo verdadeiro e derrota da humanidade (JOÃO PAULO II, 1999), uma radical infidelidade ao rico patrimônio intelectual, ético, cultural e espiritual que conquistamos até aqui (FRANCISCO, 2020).

Desse modo, tal fracasso humanitário é marcadamente complexo, pois envolve uma teia de relações e de educações, é fruto de uma policrise (MORIN; KERN, 2011). E a espetacularização desse tipo de coisa precisa ser combatida com educações outras, com pedagogias outras, com perspectivas societárias outras, com uma antropologia mais complexa e integral, que supere o antropocentrismo vazio e nos conecte com a sacralidade da vida em suas múltiplas formas (MORIN; KERN, 2011; FRANCISCO, 2015). Decisivamente, é hora de mudarmos de via (MORIN, 2021).

É necessário, enfim, que, com toda urgência, sejamos des-educados da banalização do mal, da espetacularização da morte e de uma pedagogia que nos forma para servir e reproduzir um modelo socioeconômico que tanto desrespeita a inviolável dignidade da pessoa humana.

Elvis Rezende Messias
Docente-pesquisador do Departamento de Ciências Humanas e Sociais Aplicadas da UEMG Campanha, onde exerce atualmente o cargo de vice-diretor (Adm. 2021-2025). Licenciado em Filosofia (UEMG) e bacharel em Teologia (UCDB). Especialista em Doutrina Social da Igreja (PUC-GO) e em Filosofia (Claretianos). Mestre em Educação (UNIFAL) e doutorando em Educação (UNINOVE), com bolsa CAPES. É sócio da Associação Nacional de Pesquisa em Educação (ANPEd) e membro do Grupo de Pesquisa e Estudos em Filosofia da Educação (GRUPEFE – CNPq, UNINOVE). Leigo da Diocese da Campanha, pertence à Paróquia de São Sebastião de Cambuquira/MG e é membro da equipe da Escola Diocesana de Teologia.

REFERÊNCIAS

DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.

FRANCISCO. Laudato si’. São Paulo: Loyola, 2015.

FRANCISCO. Fratelli tutti. São Paulo: Paulus, 2020.

JOÃO PAULO II. Mensagem para a celebração do XXXII Dia Mundial da Paz: no respeito dos direitos humanos, o segredo da verdadeira paz. 1999. Disponível em: https://www.vatican.va/content/john-paul-ii/pt/messages/peace/documents/hf_jp-ii_mes_14121998_xxxii-world-day-for-peace.html. Acesso em: 28 mar. 2023.

MESSIAS, Elvis Rezende. Filosofia da educação e dignidade integral da pessoa humana. In: MESSIAS, Elvis Rezende. DINIZ, Cássio (Orgs.). Dignidade humana e educação. Porto Alegre: Fi, 2021.

MORIN, Edgar. KERN, Anne Brigitte. Terra-Pátria. 6. ed. Porto Alegre: Sulina, 2011.

MORIN, Edgar. É hora de mudarmos de via: lições do coronavírus. 2. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2021.

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