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Fundamentos Bíblico-Teológicos e Históricos da DSI

Fundamentos Bíblico-Teológicos e Históricos da DSI

É comum a ideia de que a Doutrina Social da Igreja (DSI) surgiu com a publicação da encíclica Rerum novarum, de Leão XIII, em 1891, por causa dos problemas sociais que afrontavam a dignidade de trabalhadores industriários da Europa. E isso é em partes verdadeiro, pois com esse documento temos um exemplo especial do “encontro do Evangelho com a sociedade industrial moderna” (Centesimus annus = CA 3). Mas, isso não é tudo, sendo necessário compreender mais sobre a origem remota da DSI.

Na apresentação do Docat, em 2016, o Papa Francisco fez uma afirmativa esclarecedora: “em rigor, não se pode dizer que a Doutrina Social tem a sua origem neste ou naquele Papa ou neste ou naquele pensador. Ela brota do coração do Evangelho. Ela brota do próprio Jesus. Ele é em pessoa a Doutrina Social de Deus” (Docat, 2016, p. 12).

Nesse sentido, é fundamental compreender que a dimensão sociopolítica da fé antecede o surgimento da atual doutrina social. E há pelo menos 8 elementos básicos que nos ajudam a entender isso de maneira melhor:

  • O próprio Deus, em seu seio trinitário, é comunhão de Pessoas. A Trindade é uma comunidade, Ela não é isolamento, mas transborda relação e amor como dado próprio, Ela tem uma radical dimensão relacional-social.
  • Nós somos criados à imagem e semelhança desse Deus Uno e Trino. A comunhão/relação é uma característica que nos é própria, e não um anexo. Somos como Deus: pessoas. Aliás, somos pessoas porque o Deus que nos criou à sua imagem é Pessoa. Assim, a sociabilidade nos é intrínseca, isto é, faz parte da nossa natureza.
  • Todo o Antigo Testamento deixa claro o envolvimento de Deus com a caminhada humana. O Antigo Testamento expressa o quanto a fé sempre teve uma dimensão fortemente social, marcada pela luta por uma correta vivência da justiça e do direito, na presença de Deus, contando com a Sua companhia e atuação na história humana. Deus não ignora a nossa história.
  • O Novo Testamento, em especial, revela que o envolvimento de Deus com a caminhada humana assume expressão radical com a encarnação de Jesus. Ele mesmo é a própria Palavra de Deus encarnada no meio de nós e levou em Sua carne toda a indigência e indignidade que pesou sobre a humanidade, a fim de salvá-la integralmente: “a redenção começa com a encarnação” (CDSI 65). Em Jesus temos o testemunho mais convincente de que Deus realmente não ignora a história humana e a assume por completo.
  • A ação histórica de Jesus é profundamente provocadora do ponto de vista social. Sobre isso, o Evangelho fala por si: “‘eu estava com fome e me destes de comer; estava com sede, e me deste de beber; eu era forasteiro, e me recebestes em casa; estava nu, e me vestistes; doente, e cuidastes de mim; na prisão, e viestes até mim’. ‘Em verdade, vos digo: todas as vezes que fizestes isso a um destes mínimos que são meus irmãos, foi a mim que o fizestes!’” (Mt 25, 35-36.40b).
  • A vida prática das primeiras comunidades cristãs era profundamente coerente na relação entre fé e vida social concreta. Sobre o isso, a Palavra de Deus também fala por si: “A multidão dos fiéis era um só coração e uma só alma. Ninguém considerava suas as coisas que possuía, mas tudo entre eles era posto em comum. Entre eles ninguém passava necessidade, pois aqueles que possuíam terras ou casas as vendiam, traziam o dinheiro e o depositava aos pés dos apóstolos. Depois, era distribuído conforme a necessidade de cada um” (At 4, 32-35).
  • Os primeiros séculos da Igreja manifestam uma consistente dimensão social da fé. Se não se pode falar de uma doutrina social estrita no período patrístico, ali há contributos para uma profunda doutrina social cristã. A missão dos Padres da Igreja testemunha um intenso, afetivo e efetivo compromisso dos cristãos com a centralidade da dignidade humana, o bem comum, a destinação universal dos bens, a solidariedade, o cuidado dos pobres e a caridade.
  • Toda a história eclesiástica é marcada pelo compromisso social, ciente de que toda a Igreja é ministra e sacramento universal da salvação integral da criação. A Igreja Católica sempre se empenhou pelo bem-viver dos povos, compreendendo que a evangelização do social é inerente ao anúncio cristão. Como diz o Papa Francisco: “O querigma possui um conteúdo inevitavelmente social: no próprio coração do Evangelho, aparece a vida comunitária e o compromisso com os outros. O conteúdo do primeiro anúncio tem uma repercussão moral imediata, cujo centro é a caridade” (Evangelii gaudium = EG 177).

 

Assim, “a doutrina social tem o seu fundamento essencial na Revelação bíblica e na Tradição da Igreja. Neste manancial, que vem do alto, ela haure a inspiração e a luz para compreender, julgar e orientar a experiência humana e a história” (CDSI 74).

A partir de 1891, entretanto, uma série de questões sociais modernas levou a Igreja a se pronunciar e a intervir mais especificamente em “questões sociais”. Daí surgiram importantes documentos que hoje fazem parte do corpo tradicional da DSI. Vejamos os grandes documentos da DSI.

Antes do Concílio Vaticano II, foram publicados os seguintes documentos:

  • Encíclica Rerum novarum, de 1891, sobre a condição operária. A autoria foi do Papa Leão XIII.
  • Encíclica Quadragesimo anno, de 1931, sobre a restauração e aperfeiçoamento da ordem social em conformidade com a lei evangélica, no 40ª aniversário da Rerum novarum. Seu autor foi o Papa Pio XI.
  • Encíclica Non abbiamo bisogno, também de 1931, sobre o fascismo e a Ação Católica. Seu autor também foi Pio XI.
  • Encíclica Mit brennender sorge, de 1937, sobre a situação da Igreja Católica no Reich alemão. Ainda de autoria de Pio XI.
  • Encíclica Divinis Redemptoris, também de 1937, sobre o comunismo ateu. Também de Pio XI.
  • Radio-mensagem La solennità della pentecoste, de 1941, no aniversário de 50 anos da Rerum novarum. Seu autor foi o Papa Pio XII.
  • Encíclica Mater et magistra, de 1961, sobre a evolução da questão social à luz da doutrina cristã, no 70º aniversário da Rerum novarum. Seu autor foi o Papa São João XXIII.
  • Encíclica Pacem in Terris, de 1963, sobre a paz de todos os povos na base da verdade, justiça, caridade e liberdade. Seu autor também foi o Papa São João XXIII.

 

Durante o Concílio Vaticano II, e como fruto do próprio Concílio, a DSI ganhou o seguinte documento:

  • Constituição Pastoral Gaudium et spes, de 1965, sobre a Igreja no mundo atual. Como se disse, sua autoria é do próprio Concílio, sendo assinado pelo Papa São Paulo VI.

 

E a partir do Concílio Vaticano II, tornaram-se públicos os seguintes documentos:

  • Encíclica Populorum progressio, de 1967, sobre o desenvolvimento dos povos. Seu autor foi o Papa São Paulo VI.
  • Carta Apostólica Octogesima adveniens, de 1971, por ocasião do 80º aniversário da Rerum novarum. Autoria também de São Paulo VI.
  • Encíclica Laborem exercens, de 1981, sobre o trabalho humano, no 90º aniversário da Rerum novarum. Seu autor foi o Papa São João Paulo II.
  • Encíclica Sollicitudo rei socialis, de 1987, pelo 20º aniversário da Populorum progressio. Seu autor também foi o Papa São João Paulo II.
  • Encíclica Centesimus annus, de 1991, no centenário da Rerum novarum. Autoria também de São João Paulo II.
  • O Compêndio da Doutrina Social da Igreja, de 2004, publicado pelo Pontifício Conselho “Justiça e Paz”, sob o pontificado de São João Paulo II.
  • Encíclica Caritas in veritate, de 2009, sobre o desenvolvimento humano integral na caridade e na verdade. Seu autor foi o Papa Bento XVI.
  • Encíclica Laudato si’, de 2015, sobre o cuidado da casa comum. Seu autor é o Papa Francisco.
  • O Docat, de 2016, um compêndio da DSI para jovens, em forma de perguntas e respostas, publicado sob o pontificado de Francisco.
  • Exortação Apostólica Pós-Sinodal Querida Amazônia, de 2020. Autoria de Francisco.
  • Encíclica Fratelli tutti, também de 2020, sobre a fraternidade e a amizade social. De Francisco.
  • E Exortação Apostólica Laudate Deum, de 2023, sobre a crise climática. Também do Papa Francisco.

 

Estes são os grandes documentos da DSI. Elaborados em contextos específicos, eles são a expressão mais concreta do desenvolvimento histórico da DSI e têm ensinamentos tão basilares que seguem sempre atuais. Um exemplo disso é a encíclica Pacem in Terris: mesmo após mais de 60 anos de sua publicação, há nesse documento uma instigante atualidade contra as guerras e contra a falsa solução para a paz através das armas. As quatro bases ali apresentadas se tornaram os valores permanentes (verdade, liberdade e justiça) e a via mestra (caridade) da DSI. Conheça, ame e viva a DSI!

 

Prof. Dr. Elvis Rezende MessiasCristão leigo da Diocese da Campanha/MG, onde é assessor diocesano do Movimento Fé e Política. É casado, trabalha como professor-pesquisador do IFTM e é autor, dentre outros, do livro O evangelho social: manual básico de doutrina social da Igreja (Paulus, 2020), escrito com D. Pedro Cruz, bispo diocesano da Campanha.

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