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DE LEÃO XIII A LEÃO XIV: OS GRANDES DOCUMENTOS DA DSI ( Parte 2)

DE LEÃO XIII A LEÃO XIV: OS GRANDES DOCUMENTOS DA DSI ( Parte 2)

Continuamos nosso bonito e fecundo caminho de conhecimento dos documentos da Doutrina Social da Igreja (DSI). No artigo anterior, vimos as “encíclicas” sociais publicadas antes do Concílio Vaticano II. Agora, veremos os textos de DSI que vieram a público enquanto estava acontecendo o evento conciliar.

1º) Pacem in Terris – PT (“A paz na Terra”): publicada pelo Papa João XXIII no dia 11 de abril de 1963, ela é a grande “Carta da Paz Mundial e dos Direitos Humanos” elaborada pela DSI. Daí que a Encíclica já começa com uma destacada novidade: seus destinatários não são somente o clero ou o povo católico, mas “todas as pessoas de boa-vontade”; pela primeira vez um documento da Igreja foi assim nominalmente destinado (cf. CDSI 95). Claramente, o “Papa Bom” tinha uma profunda consciência do crítico momento global pelo qual passava a humanidade, sabia da extrema necessidade de promoção da cultura do diálogo fraterno e estava convencido de que a doutrina católica sempre tem o que dizer ao mundo, bem como de que a Igreja também tem o que ouvir da realidade e dos “sinais dos tempos”.

O contexto geral naquele momento histórico era o de uma “época marcada pela proliferação nuclear” (CDSI 95) e de Guerra Fria, e os egoísmos nacionalistas colocavam em risco a própria existência da humanidade. Em outubro de 1962 a União Soviética instalou mísseis em Cuba como uma estratégia de ameaça aos Estados Unidos, país que, antes, havia instalado mísseis na Turquia, ameaçando a União Soviética. O mundo estava diante de uma situação que pode ser compreendida simultaneamente como “guerra fria” e como “paz fria”, pois se marcava por uma corrida armamentista que promovia uma falsa paz fundada no medo e na ameaça violenta.

Não obstante, o contexto eclesial naquela época era o de profunda reflexão da Igreja sobre sua atuação pastoral na contemporaneidade. Não podemos nos esquecer que a PT foi publicada pouco depois do encerramento da primeira sessão do Concílio Vaticano II, que, como um todo, durou de 11 de outubro de 1962 a 8 de dezembro de 1965, totalizando quatro sessões solenes. O Concílio é uma singular expressão de uma Igreja aberta ao franco diálogo com o mundo e em significativo processo de aprofundamento de sua autoconsciência.

Antes de ser eleito pontífice, João XXIII, que se chamava Ângelo Giuseppe Roncalli, havia trabalhado diversos anos como núncio apostólico (diplomata do Vaticano) em alguns países, tendo desenvolvido um espírito muito atento a questões geopolíticas e aberto ao diálogo com diferentes perspectivas de mundo. De algum modo, a PT manifesta muito bem a postura de Roncalli. Com isso, fica evidente também a profunda fé do autor, pois, se o clima de violência e de nacionalismo sempre o preocupava, muito mais o inspiravam a paz e a força paradoxal da simplicidade do Evangelho; João XXIII era um verdadeiro peregrino de Esperança e instrumento da Paz. Por isso, não cansava de propor que “as eventuais controvérsias entre os povos devem ser dirimidas com negociações e não com armas” (PT 125).

Nesse sentido, a PT proclama que a urgência e o desejo universal de paz só podem ser concretizados se forem elaborados sobre as bases da verdade, da justiça, da liberdade e da caridade, como o próprio subtítulo da Encíclica afirma, bem como sob o respeito irrenunciável pela dignidade integral de todas e cada uma das pessoas humanas. E isso se constituiu em mais um grande legado de João XXIII para a DSI, pois essas quatro bases para a paz e o respeito ali propostos se consolidaram ainda mais como os valores permanentes (verdade, justiça, liberdade), a via-mestra (caridade) e o princípio fundamental (dignidade humana) da DSI.

Decorre disso outra contribuição fundamental da DSI de João XXIII para o mundo todo, que foi uma franca defesa dos “direitos humanos”, especialmente tal como eles se encontram dispostos na Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), publicada pela ONU em 1948, positivamente mencionadas na Encíclica (cf. PT 141-144). Como afirma o Compêndio da Doutrina Social da Igreja, “A Pacem in Terris contém uma primeira aprofundada reflexão da Igreja sobre os direitos” (CDSI 95).

Atualmente, porém, muros divisores continuam sendo construídos, a dignidade integral e inalienável da pessoa humana segue sendo desrespeitada e a cultura armamentista volta a ganhar espaço no mundo, iludindo muita gente com uma falsa paz. Como se vê, é preciso, ainda hoje, redescobrir o texto e o espírito da última encíclica social de João XXIII, que continua extremamente atual.

2º) Gaudium et spes – GS (“As alegrias e as esperanças”): publicada no dia 7 de dezembro de 1965, ela é a Constituição Pastoral elaborada pelo Concílio Vaticano II, sendo o grande documento conciliar de DSI. Ou seja, “pela primeira vez o Magistério solene da Igreja, no seu mais alto nível, se exprime tão amplamente acerca dos diversos aspectos temporais da vida cristã” (CDSI 96). Nesse sentido, a GS é “uma significativa resposta da Igreja às expectativas do mundo contemporâneo” (CDSI 96), atenta e interessada “acerca do testemunho e da vida dos cristãos” na realidade social.

Pode-se dizer, então, que o contexto mais específico da GS é a conclusão do Concílio Vaticano II, que interpelava a Igreja a refletir sobre si mesma diante das expectativas do ser humano contemporâneo, com quem compartilha a mesma sorte histórica, embora a Igreja também seja um sinal diferente, já que ela é sacramento da salvação integral de Jesus Cristo para o mundo todo.

A GS é um documento significativamente amplo, que “aborda organicamente os temas da cultura, da vida econômico-social, do matrimônio e da família, da comunidade política, da paz e da comunidade dos povos, à luz da visão antropológica cristã e da missão da Igreja […] tudo considerado a partir da pessoa e em vista da pessoa” (CDSI 96).

Trata-se, assim, de um documento especialmente inspirador para o desenvolvimento da DSI a partir de então. Conforme ensinou a Congregação para a Educação Católica em suas Orientações para o estudo e o ensino da Doutrina Social da Igreja na formação sacerdotal (n. 25), com a GS podemos claramente reconhecer “que a atenção da Constituição em relação às mudanças sociais, psicológicas, políticas, econômicas, morais e religiosas estimulou cada vez mais… a preocupação pastoral da Igreja pelos problemas dos homens e o diálogo com o mundo”.

Merece ser mencionada, por fim, a Declaração Dignitatis humanae (DH), que, no mesmo dia 7 de dezembro de 1965, foi publicada pelos Padres Conciliares para tratar do tema da liberdade religiosa, realidade que deve ser reconhecida, respeitada e promovida por todas as nações como um direito humano fundamental. Em síntese, assim se expressa o documento: “A liberdade religiosa de prestar culto a Deus, exigência hoje de um número crescente de pessoas, significa a rejeição de toda coerção religiosa por parte da sociedade civil. Não contraria em nada a doutrina católica tradicional sobre os deveres morais das coletividades e dos indivíduos humanos para com a verdadeira religião e a única Igreja de Cristo. […] O Concílio declara que a pessoa tem direito à liberdade religiosa. […] Declara igualmente que o direito à liberdade religiosa se baseia na dignidade da pessoa, reconhecida pela razão e manifestada pela palavra de Deus revelada. O direito da pessoa à liberdade religiosa deve ainda ser reconhecido pelo ordenamento jurídico da sociedade, para que se torne um direito civil” (DH 2).

Esses foram os documentos da DSI que vieram a público durante o Concílio Vaticano II. No próximo artigo veremos aqueles documentos da DSI que surgiram após o encerramento do próprio Concílio. Por enquanto, continue se aprofundando no conhecimento das “encíclicas” sociais vistas até aqui. Boa jornada. Até breve.

 

Texto: Prof. Dr. Elvis Rezende MessiasCristão leigo da Diocese da Campanha/MG. É casado, trabalha como professor-pesquisador e é autor do livro O evangelho social: manual básico de doutrina social da Igreja (Paulus, 2020), escrito com D. Pedro Cruz, bispo eleito de Nova Friburgo.

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