O dogma da Trindade é central para a fé cristã, havendo sinais para compreendê-lo em diversas passagens bíblicas e em textos dos primeiros “Padres” da Igreja. Há muitas visões interpretativas sobre o tratado Trinitário, que vão desde a afirmação de que este é um mistério profundamente incompreensível para mente humana, como o famoso relato agostiniano do menino na praia em tentativa de colocar todo o oceano em um pequeno buraco na areia, até ao posicionamento de que o mistério trinitário é completamente apreensível pela mente humana. Seja como for, o tema teológico da Trindade inspirou inúmeras reflexões entre os cristãos – e, mesmo, para além do cristianismo – e, dentre elas, há algumas analogias com implicações práticas consideráveis. Uma merece destaque: o caso da vivência comunitária da fé a partir do Mistério Trinitário.
A teologia católica afirma a natureza una da Trindade. Ou seja, não professamos fé em “três deuses, mas um só Deus em três pessoas” (CIgC 253). Nesse sentido, “as pessoas divinas são realmente distintas entre si” (CIgC 254), mas “não dividem entre si a única divindade” (CIgC 253), de tal forma que “cada uma delas é Deus por inteiro” (CIgC 253). A distinção das pessoas trinitárias, assim, se enche de sentido à luz do mistério da comunhão, tendo em vista que o Pai e o Filho e o Espírito são relativos uns aos outros (cf. CIgC 255), isto é, tal distinção só é possível por sua natureza relacional, e não oposicional.
O Mistério da Trindade, como se pode ver, carrega uma dimensão inquestionavelmente comunitária; em seu próprio seio, o Deus Uno e Trino (Triuno) é comunhão, e essa comunhão gera comunidade. A Trindade transborda relação, não por carência ou falta de algo, mas por doação e interpenetração existencial, entrelaçamento…
Isso implica, por consequência, que a Trindade também transborda Revelação, comunicação de si aos seres humanos, em convite de comunhão com Ela (cf. DV 2); o Catecismo afirma isso claramente: “O fim último de toda a Economia divina é a entrada das criaturas na unidade perfeita da Santíssima Trindade” (CIgC 260).
Poderíamos, então, refletir sobre o fato de que, sendo Deus tão pleno de si, tão completo e perfeito em sua própria natureza, justamente por isso Ele se faz relacional, um ser-para, em busca do ser humano; não há perigo de crise de identidade n’Aquele que é puro ato de ser, identidade que possibilita toda identidade outra, realidade que possibilita todas as outras realidades restantes (cf. Ratzinger, 2006, p. 39).
Desse modo, o Deus Uno e Trino, pleno na eternidade, cria o tempo, mas o inunda com o eterno, a partir da autocomunicação de Si mesmo, de tal modo que, como acrescenta o Catecismo Católico (n. 260), a mesma Trindade que nos chama a adentrar na sua unidade adentrou-nos por primeiro. “Dissemos tantas vezes que Deus habita em nós, mas é melhor dizer que nós habitamos n’Ele, que Ele nos possibilita viver na sua luz e no seu amor. Ele é nosso templo. ‘Uma só coisa ardentemente desejo: é habitar na casa do Senhor todos os dias da minha vida’ (Sl 27/26, 4). N’Ele somos santificados” (GE 51).
Desse modo, torna-se inevitável perceber que há uma forte dimensão social/comunitária para a vivência da fé a partir do Mistério da Trindade. Sendo a Trindade uma comunhão em sua própria natureza divina, é possível repensar a própria experiência que o ser humano faz de Deus e do próprio ser humano a partir de seu encontro com Deus. Ou seja, ao nos encontrarmos com Deus (ou sermos encontrados por Ele) e adentrarmo-nos em sua unidade misteriosa, inevitavelmente nos encontramos também com a humanidade toda, em uma verdadeira comunhão de vida que é geradora de vida comunitária.
A unidade divina não pressupõe um absolutismo social, nem a sua realeza um reino tirânico, e isso questiona consideravelmente nossos modelos de sociedade e de relacionamentos. A religiosidade a partir do Mistério da Trindade é um verdadeiro “religare”, pois religa a pessoa humana à sua raiz, ao Deus Criador, religa o ser humano a si mesmo, à sua dimensão ontológica mais plena, mas essa dimensão ontológica mais plena é também um verdadeiro “relegere”, isto é, uma releitura de mundo e do próprio ser humano, exigindo novo parâmetro relacional na vida cotidiana. É como bem expressou Pe. Zezinho:
Feita de dois riscos é a minha cruz. Sem esses dois riscos não se tem Jesus. Um é vertical, o outro horizontal. O vertical eleva, o horizontal abraça. Feita de dois riscos é a minha cruz. Sem esses dois riscos não se tem Jesus. Feita de dois riscos é a minha fé. Sem esses dois riscos religião não é. […] Feito de dois riscos é o meu caminhar. Sem esses dois riscos posso não chegar. Um é vertical, o outro horizontal. O vertical medita, o horizontal agita. Feita de dois riscos é o meu caminhar. Sem esses dois riscos posso não chegar. (Pe. Zezinho, “Dois riscos”).
A Igreja, comunidade dos fiéis unidos à sua cabeça que é Cristo, é o grande “sacramento da salvação” (cf. LG 1 e 48), um sinal especial da própria Trindade autorrevelada. Mantemo-nos unidos, pois somos um corpo, um verdadeiro corpo místico. Assim sendo, a vivência da fé pelos cristãos, à luz do Mistério Trinitário, é sempre provocada pela exigência de superarmos o egoísmo/individualismo, com uma forte crítica ao subjetivismo fideísta gerador de fechamentos aos outros. Mas temos também a exigência de superarmos o coletivismo/nacionalismo, com uma forte crítica à teologia do medo e do domínio que gera uma espiritualidade da ameaça servilista. Nesse sentido, viver a vida e a fé a partir da Trindade supera tanto uma religiosidade verticalista, espiritualista, quanto uma religiosidade meramente horizontalista, materialista.
Somos, enfim, pessoas humanas criadas à imagem e semelhança do Deus Trino, que é Comunhão de Pessoas Divinas e Deus-Conosco. NEle temos uma dignidade integral e a graça de uma salvação também integral, encontrando aí a orientação necessária para uma vida justa e plena na relação conosco mesmos, com os outros, com toda a criação e com o próprio Criador.
Escrito por: Prof. Dr. Elvis Rezende Messias*
*(Cristão leigo da Diocese da Campanha/MG, assessor diocesano do Movimento Fé e Política, membro da Paróquia Santo Antônio, Campanha, onde atua na Música Litúrgica. É casado, trabalha como professor-pesquisador e é autor do livro O evangelho social: manual básico de doutrina social da Igreja (Paulus, 2020), escrito com D. Pedro Cruz, bispo da Campanha).
REFERÊNCIAS
FRANCISCO. Gaudete et exsultate (19 mar. 2018). São Paulo: Loyola, 2018.
RATZINGER, Joseph. Introdução ao cristianismo: preleções sobre o Símbolo Apostólico com um novo ensaio introdutório. 2. ed. Tradução de Alfred J. Keller. São Paulo: Loyola, 2006.
VATICANO II. Lumen gentium: constituição dogmática sobre a Igreja. 21 nov. 1964. Disponível em: https://www.vatican.va/archive/hist_councils/ii_vatican_council/documents/vat-ii_const_19641121_lumen-gentium_po.html
VATICANO II. Dei Verbum: constituição dogmática sobre a revelação divina. 18 nov. 1965. Disponível em: https://www.vatican.va/archive/hist_councils/ii_vatican_council/documents/vat-ii_const_19651118_dei-verbum_po.html
SANTA SÉ. Catecismo da Igreja Católica. 5. ed. Brasília: CNBB, 2022.