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Os Valores e a Via Mestra da Doutrina Social da Igreja

Os Valores e a Via Mestra da Doutrina Social da Igreja

A Doutrina Social da Igreja (DSI) apresenta um conjunto articulado de valores que são verdadeiras luzes para a compreensão cristã da realidade.

A DSI, então, é marcada por uma forte dimensão valorativa. Essa dimensão é muito importante, pois deixa claro que a Igreja não abre mão de certos valores considerados como irrenunciáveis para uma postura firme diante de qualquer desafio social que se nos apresente.

No início da encíclica Pacem in Terris (PT), o papa São João XXIII estabeleceu 4 bases para a paz entre os povos: a verdade, a justiça, a caridade e a liberdade. Elas se consagraram no corpo geral da DSI como seus valores fundamentais (verdade, justiça e liberdade) e sua via mestra (caridade). Segundo o Compêndio da Doutrina Social da Igreja (CDSI), esses “valores sociais são inerentes à dignidade da pessoa humana, da qual favorecem o autêntico desenvolvimento […] sua prática constitui a via segura para alcançar um aperfeiçoamento pessoal e uma convivência social mais humana” (CDSI 197).

Vejamos, então, os três grandes valores e a via mestra da DSI.

1º) A verdade é um valor fundamental. Abrir-se a ela e buscá-la dedicadamente é um compromisso irrenunciável para que cada pessoa possa reconhecer integralmente aquilo que cada realidade é. Ou seja, o respeito ao valor da verdade é indispensável para o reconhecimento da profunda dignidade humana, sua transcendência, sua abertura ontológica ao outro, à comunhão, à sociabilidade, para reconhecer os próprios direitos e deveres em relação às outras pessoas, a toda criação e a Deus (cf. PT 35). A verdade é a base para a renúncia consciente e a denúncia consistente das mentiras, da calúnia e da desconstrução da dignidade de tudo que existe. É um importante valor no combate a falsas proposições de paz e à má-fé que justifica a guerra, a morte do outro, a exploração, a miserabilidade, o totalitarismo e o relativismo que minam o olhar integral à realidade próxima e à vida como um todo. Por fim, o próprio tornar-se cristão equivale-se ao conhecimento da Verdade, pois Cristo é, para nós, a Verdade (cf. Jo 14, 6) e é Ele mesmo quem nos leva a amar “com as ações e em verdade” (1Jo 3, 18).

2º) A liberdade é outro valor fundamental, pois, sendo os seres humanos “por natureza dotados de razão, assumem a responsabilidade das próprias ações” (PT 35). A liberdade é uma grande característica antropológica, “expressão da singularidade de cada pessoa humana” (CDSI 200), e valor que consente a cada um realizar sua própria condição humana em plena sintonia com a sua racionalidade, responsavelmente, na abertura, na comunhão, na sociabilidade, na alteridade, visando o bem comum. Como ensina o Catecismo da Igreja Católica (CIgC), “Em virtude de sua alma e de seus poderes espirituais de inteligência e vontade, o homem é dotado de liberdade, sinal eminente da imagem de Deus” (CIgC 1705). Assim sendo, a liberdade não significa fazer tudo o que se deseja, sem nenhuma referência ou parâmetro; ela exige orientação ao valor da verdade, sem o qual se degenera em formas de arbítrio irresponsável. Se a liberdade torna o ser humano responsável pelos seus atos, seu exercício é inseparável da dignidade humana. A liberdade deve ser respeitada, enfim, como direito humano e ser civilmente protegida nos limites do bem comum e da justa ordem (cf. CIgC 1738).

3º) O valor da justiça, por sua vez, é um compromisso irrenunciável oriundo da verdade integral da pessoa humana e é o fundamento para um concreto respeito à dignidade de toda pessoa e mesmo de tudo que existe. A justiça reclama da estrutura social plena dedicação “ao respeito dos direitos alheios e ao cumprimento dos próprios deveres” (PT 35). Assim, a justiça “não é uma simples convenção humana, porque o que é ‘justo’ não é originariamente determinado pela lei, mas pela identidade profunda do ser humano” (CDSI 202), exigindo condições concretas e integrais de vida digna: “a justiça é a virtude que inclina a dar a cada um o que lhe é devido, aquilo que é seu” (Santo Tomás, Suma Theol. I – II, q. 5f, a. 11; cf. CIgC 1807). Em síntese: “Do ponto de vista subjetivo, a justiça se traduz na atitude determinada pela vontade de reconhecer o outro como pessoa, ao passo que, do ponto de vista objetivo, essa constitui o critério determinante da moralidade no âmbito interssubjetivo e social” (CDSI 201).

Temos, então, a “via mestra” da DSI, a caridade. Esse é caminho especial que nos capacita, de modo radical, a “sentir as necessidades alheias como próprias, fazendo os outros participantes dos próprios bens”, à procura de “uma perfeita comunhão de valores culturais e espirituais” (PT 35).

Na verdade, não existe referência maior para entender o que é a caridade a não ser o próprio Deus: Deus caritas est (1Jo 4, 16). E, para o apóstolo São João, o Deus Amor é o Amor encarnado. Em Cristo se revela toda a complexidade e exigência do amor em sua dinâmica de compromisso com o outro. Amor que não se encarna na vida concreta das pessoas não é amor. Em Cristo, o amor tem rosto, o amor se aproxima, o amor tem carne e habita entre nós (cf. Jo 1, 14), de modo que é impossível amar a Deus sem empenho em amar o próximo, sem encarnar a fé. “Quem diz que ama a Deus e não ama seu irmão é um mentiroso” (1Jo 4, 20). E como ensina Bento XVI na encíclica Deus caritas est (DCE): “num mundo em que ao nome de Deus se associa às vezes a vingança ou mesmo o dever do ódio e da violência, esta é uma mensagem de grande atualidade e de significado muito concreto” (DCE 1).

A caridade, como atributo divino, atua dinamicamente em cada pessoa. Assim como Deus se compromete com a nossa salvação integral, também nós, pelo influxo do amor divino presente em nossa identidade, somos capacitados ao compromisso com o desenvolvimento integral das pessoas e de toda a criação na sociedade em que vivemos. Ou seja, o amor/caridade não se trata de mero “bom sentimento” ou de “assistencialismo”, mas de uma dinâmica que nos interpela a um compromisso efetivo com a transformação da estrutura social para “sustentar uma sociedade digna do homem” (CDSI 580). A caridade é força divina em nós para o crescimento do bem comum e para a consciência da destinação universal dos bens, pois nos leva a trabalhar concretamente para a efetivação do bem de todos. Em última instância, ela constitui um verdadeiro mandamento social (cf. CIgC 1889), pois o próximo a ser amado é sempre alguém real que se nos apresenta concreta e socialmente (cf. CDSI 208).

A caridade é, assim, a “via mestra” de nossas ações e percepções, hoje e sempre, como bem ensinou o papa Leão XIII na encíclica Rerum novaum (RN), a “carta magna” da DSI: “A salvação desejada deve ser principalmente fruto de uma grande efusão da Caridade, ou seja, aquela caridade cristã que compendia em si todo o Evangelho, e que, sempre pronta a sacrificar-se pelo próximo [e não a sacrificar o próximo], é o antídoto mais seguro contra o orgulho e o egoísmo do século” (RN 35).

 

Prof. Dr. Elvis Rezende MessiasCristão leigo da Diocese da Campanha/MG, onde é assessor diocesano do Movimento Fé e Política. É casado, trabalha como professor-pesquisador do IFTM e é autor, dentre outros, do livro O evangelho social: manual básico de doutrina social da Igreja (Paulus, 2020), escrito com D. Pedro Cruz, bispo diocesano da Campanha.

 

 

Imagem: Rembrandt van Rijn, O Retorno do Filho Pródigo, 1661–1669. Museu Hermitage, São Petersburgo.

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