Setembro é o “mês da Bíblia” para a Igreja Católica no Brasil desde 1971. São Jerônimo, conhecido por traduzir as Escrituras para o latim, tem sua memória litúrgica celebrada no dia 30 desse mês. Inspirado nessa data importante em que se comemora o apostolado desse grande homem dedicado ao conhecimento e à divulgação da Palavra de Deus, o cuidado pastoral do catolicismo tornou setembro o mês no qual os cristãos católicos são chamados a renovar seu amor pela Bíblia, a fim de que dela estejam sempre próximos em todos os meses de suas vidas.
Mas o que é a Bíblia? Primeiramente, é bom lembrar que o termo “Bíblia” é de origem grega e significa “livros”, no plural. Com isso, temos um primeiro dado importante: a “bíblia” não é um livro só, mas um conjunto de vários “livros” reunidos e que são divididos em duas grandes partes:
1ª) o Antigo ou Primeiro Testamento (AT), que é a parte adotada tanto por judeus quanto por cristãos e que possui um total de 46 livros (na versão adotada pelo catolicismo) ou um total de 39 livros (na versão adotada pelo judaísmo e pelo protestantismo – essa versão reduzida aceita somente a escrita hebraica do AT, conforme os judeus ortodoxos que não aceitaram a tradução grega – chamada Septuaginta – e os sete livros daí originados por volta de 250 a.C.: Judite, Tobias, I e II Macabeus, Baruc, Eclesiástico e Sabedoria, além de trechos de Ester e de Daniel);
2ª) o Novo ou Segundo Testamento (NT), que é a parte adotada exclusivamente pelos cristãos e que possui um total de 27 livros, subdivididos em 4 evangelhos (Mateus, Marcos, Lucas e João), o livro dos Atos dos Apóstolos (At), 13 cartas de tradição paulina (Romanos, I e II Coríntios, Gálatas, Efésios, Filipenses, Colossenses, I e II Tessalonicenses, I e II Timóteo, Tito, Filemon), 8 cartas católicas/universais (Hebreus, Tiago, I e II Pedro, I, II e III João, Judas) e o livro do Apocalipse (Ap).
Daí uma segunda informação importante: já que a “bíblia” é um conjunto de vários “livros”, ela também não foi escrita por uma única pessoa, mas por muitas, nem foi escrita numa única época e lugar, mas em vários. Podemos até dizer que ela é “um livro”, levando em consideração o Deus único que nela pouco a pouco se revela e inspira, como autor fundamental, a unidade de fé escondida no conjunto daqueles 73 livros. Mas essas Escrituras são um livro de experiências variadas e contextualizadas de fé, e isso tudo foi primeiramente vivido por um povo que, aos poucos, se reconhece como “povo de Deus”, e, só depois, essas experiências foram registradas por escrito ao longo de muitos anos e por muitas mãos.
É importante entender também um terceiro dado: a Bíblia não foi escrita da mesma forma. Ou seja, ela possui estilos e gêneros literários diferentes: históricos; proféticos; legislativos; sapienciais; genealógicos; cartas, epístolas e bilhetes; revelações; sermões; parábolas; oráculos; crônicas, dentre outros. Além disso, vale lembrar que, por vezes, um mesmo livro bíblico mescla variados estilos e gêneros em trechos diferentes.
Nesse sentido, quando lemos a Bíblia, temos que levar em conta um quarto ponto fundamental para que possamos lê-la em sintonia com a nossa comunidade de fé, ou seja, com a Igreja, sua Tradição, seu Magistério, seu senso de fé (sensus fidei) e o autêntico senso de fé de todos os seus membros (sensus fidelium). Em sintonia com o Catecismo da Igreja Católica (CIgC, 101-141), trata-se de levarmos em consideração 4 aspectos básicos das Escrituras:
1) o Aspecto Literário: que considera o gênero literário do texto bíblico e suas particularidades textuais;
2) o Aspecto Histórico: que considera o texto no contexto histórico em que foi escrito, considerando circunstâncias e destinatários;
3) o Aspecto Doutrinal: que considera as modalidades de ensinamento da mensagem e a ideia transmitida pelo escritor sagrado – também chamado de “hagiógrafo” –, que não escreveu à toa, mas teve uma ideia, uma intenção e uma inspiração divina;
4) o Aspecto Cristão: que, à luz da revelação plena de Jesus Cristo, nos exorta a acolher a mensagem de cada livro como uma parte que completa o todo. Como ensina a Constituição Dogmática Dei Verbum (DV): “Deus, inspirador e autor dos livros dos dois Testamentos, dispôs tão sabiamente as coisas, que o Novo Testamento está latente no Antigo, e o Antigo está patente no Novo. Pois, apesar de Cristo ter alicerçado a nova Aliança no seu sangue, os livros do Antigo Testamento, ao serem integralmente assumidos na pregação evangélica, adquirem e manifestam a sua plena significação no Novo Testamento” (DV, 16, itálicos meus).
Esses aspectos se iluminam ainda mais à luz dos seguintes critérios, que são uma quinta informação importante para o nosso conhecimento e vivência da Bíblia:
- a) prestar muita atenção ao conteúdo e à unidade da Escritura inteira: a Bíblia é una em razão da unidade do próprio Deus e da unidade de Seu projeto (cf. CIgC, 112);
- b) ler a Escritura dentro da Tradição viva da Igreja inteira: a Sagrada Escritura está inscrita mais no coração da Igreja do que nos instrumentos materiais (cf. CIgC, 113).
- c) estar atento à anagogia da fé: há uma ligação das verdades de fé entre si e o projeto total da Revelação Divina, de tal modo que não se contradizem (cf. CIgC, 114).
- d) estar atento aos sentidos da Escritura: o sentido literal e o sentido espiritual estão ligados entre si e interligam as perspectivas alegórica, moral e anagógica (cf. CIgC, 115-119).
Imagino que até esse momento da leitura deste texto você tenha aprendido ou lembrado de várias coisas. Mas imagino também que algumas ainda não estejam tão claras, como é o caso de alguns termos “diferentes” que apareceram. Isso foi proposital. Diante disso, o convite que fica é para que, inspirado(a) por esse “mês da Bíblia”, você se dedique cada vez mais ao conhecimento das Sagradas Escrituras e se aprofunde em seu estudo: “Quem crê no Deus que se manifesta nas palavras da Bíblia não a lê sem se preparar” (Bíblia da CNBB, Introdução geral, 2018, p. 14).
E, para a Igreja Católica, não dá para entender bem a Bíblia sem outros pilares fundamentais: a Tradição e o Magistério da Igreja. Esse é o sexto dado fundamental: a fé católica sustenta-se em três pilares: Escritura, Tradição e Magistério, pois “a fé cristã não é uma ‘religião do Livro’. O Cristianismo é a religião da ‘Palavra de Deus’, ‘não de uma palavra escrita e muda, mas do Verbo encarnado e vivo’” (CIgC, 108). Assim, a Bíblia não é um livro sem Tradição, sem contexto, sem comunidade de fé. Ela também não é um livro intimista, subjetivista e do isolamento. Bem compreendida à luz da espiritualidade cristã, ela é o livro de um povo chamado à comunhão entre si e com Deus, o livro de uma comunidade que se reúne em discipulado ao redor de Jesus, que nos ensina a chamar o Pai de “Nosso”, a pedir o pão “nosso”, e nos envia, juntos, em missão.
Finalmente, um sétimo dado: como livro que é fruto da experiência de fé de um povo, a Bíblia reúne todo esse conjunto de detalhes porque ela é uma Palavra Viva e, por isso, uma Palavra de Vida. O livro da Bíblia e o livro da Vida cotidiana se encontram. Tudo que há nas Escrituras ali está para se refletir sobre o sentido da vida e dos fatos da vida à luz da experiência de Deus vivida por um povo, em vista a orientá-lo concretamente e para orientar às gerações futuras.
Portanto, desejemos que a Palavra de Deus seja Viva em nosso meio, descobrindo que a nossa caminhada de hoje é também uma “caminhada bíblica” e que o Senhor está no meio de nós, caminhando conosco: “Na verdade, o Senhor está neste lugar, e eu não sabia” (Gn 28, 16). Setembro foi transformado no mês da Bíblia para que a Palavra de Deus – que vai além da Bíblia – nos transforme todos os meses, todos os dias, a cada instante: “Porei em vós meu espírito e vivereis” (Ez 37, 14). Essa promessa – transformada no lema do Mês da Bíblia de 2024 – também é para nós! Nossa história também é História da Salvação! Louvado seja Deus!
Texto: Prof. Dr. Elvis Rezende Messias[1]
[1] Cristão leigo da Diocese da Campanha/MG, assessor diocesano do Movimento Fé e Política, membro da Paróquia Santo Antônio, Campanha, onde atua na Música Litúrgica. É casado, trabalha como professor-pesquisador e é autor do livro O evangelho social: manual básico de doutrina social da Igreja (Paulus, 2020), escrito com D. Pedro Cruz, bispo da Campanha.