Nesse ano de 2024, a Igreja Católica está comemorando os 20 anos de publicação do Compêndio da Doutrina Social Igreja (CDSI). Vamos compreender um pouco a importância desse documento, destacando seu contexto de origem, seu objetivo e sua estrutura.
O CDSI foi apresentado de maneira escrita no dia 2 de abril de 2004, pelo cardeal Renato Raffaele Martino, que na ocasião era o prefeito do Pontifício Conselho “Justiça e Paz”, responsável pela redação e publicação do Compêndio. Mas o primeiro a receber a missão de iniciar o processo de elaboração do CDSI foi o cardeal Van Thuân, prefeito do Pontifício Conselho entre 1998 e 2002. Com a sua morte, coube a Raffaele Martino prosseguir os trabalhos, assinando, então, o texto de apresentação. E a apresentação oficial pública do Compêndio, com a participação de pessoas em um evento específico, ocorreu em 25 de outubro de 2004.
Esse documento, como o nome dele diz, é um compêndio. O que isso quer dizer? Não é um compêndio no sentido de ser uma coletânea das “encíclicas sociais”. Ele não é uma coletânea das encíclicas, como é, por exemplo, o compêndio do Concílio Vaticano II, que compila os discursos, constituições, decretos e declarações conciliares. O Compêndio da Doutrina Social da Igreja é uma exposição conjunta, sintética, mas também sistemática, de todo o ensinamento social católico. Ele sintetiza, a partir de um texto próprio, os pontos centrais de tudo que a Igreja Católica já havia ensinado e elaborado como doutrina sobre a vida humana em sociedade até o ano de 2004, se concentrando, sobretudo, no magistério social que foi transmitido desde a encíclica Rerum novarum (1891), considerada a carta magna da DSI, até a Centesimus annus (1991), que foi a última encíclica social publicada antes do Compêndio.
Aqui temos um detalhe importante: muitas pessoas não sabem que a Igreja não possui apenas uma doutrina dogmática, uma doutrina sobre Deus, sobre liturgia e sobre sacramentos, mas possui também uma doutrina sobre a nossa vida social, ela tem um magistério autêntico para a nossa vida em sociedade. A isso nós chamamos de doutrina social.
Voltando ao Compêndio, a ideia era que ele saísse publicado por volta de 2001, logo após terminasse o jubileu da Encarnação do ano 2000. Mas o texto, por lidar com questões sociais e morais complexas, acabou levando mais tempo para ser preparado até chegar à sua clareza redacional. É um documento muito rico e denso, uma pérola que expõe uma doutrina que deve ser conhecida, amada e praticada por todos os católicos.
A origem do CDSI, porém, começa muito antes de 2004. O seu sonho nasceu no coração do Papa São João Paulo II, entre os anos 1998 e 1999, aproximadamente. Na década de 1990, o Papa convocou diversos sínodos para cada continente do planeta Terra, a fim de pensar a missão evangelizadora nesses continentes, tendo em vista a virada do novo milênio que estava para acontecer. Em 1994 foi o sínodo para a África; em 1997 foi o sínodo para a América; em 1998 aconteceram tanto o sínodo para Ásia quanto o sínodo para Oceania; e em 1999 foi o sínodo para a Europa. Após cada sínodo, o Papa publicou uma exortação apostólica pós-sinodal, e, em 1999, saiu a exortação Ecclesia in America. No número 54 desse documento, São João Paulo II afirmou que “a complexa realidade social deste continente é um campo fecundo para análise e aplicação dos princípios universais da doutrina social” e que, “para conseguir esse objetivo seria muito útil um compêndio, uma síntese autorizada da doutrina social católica”. É aí que aparece expressamente o sonho do CDSI.
Trata-se, então, de um texto bastante consistente, com 583 números. É um documento rico, amplo, maravilhoso, muito completo, para orientar a caminhada das comunidades, da vida das pessoas, da vida social, as suas decisões, os seus critérios de compreensão da realidade. O número 10 do CDSI diz que seu objetivo é ser um instrumento para o discernimento moral e pastoral dos complexos eventos que caracterizam o nosso tempo. Então, ele é um instrumento de discernimento e não é uma resposta pronta e acabada para todos os problemas sociais concretos. Isso é importante: ele não vai dizer o que temos exatamente que fazer; por exemplo, em época de eleição, não adianta ir no Compêndio para ver qual é o número que temos que apertar na urna. Mas ele apresenta uma série de princípios de reflexão, de critérios de discernimento e de diretrizes de ação para que cada pessoa possa tomar as suas decisões e ter uma ação prática coerente com os valores professados pela fé católica, sendo um guia para inspirar, tanto no plano pessoal como no coletivo, comportamentos e opções que permitam a todas as pessoas olhar para o futuro com confiança e esperança. O texto é proposto, enfim, como motivo de diálogo com todas as pessoas que desejam sinceramente o bem do ser humano (cf. CDSI 11).
Quanto à estrutura do Compêndio da Doutrina Social da Igreja, ele está dividido em uma introdução, três grandes partes de desenvolvimento (com 12 capítulos) e uma conclusão.
- Introdução: são apresentados o espírito geral do documento e os seus objetivos, numa exposição rápida, enfatizando seu caráter de instrumento de discernimento, sua importância para o dia a dia de três grandes destinatários: a Igreja em geral, os fiéis católicos leigos e leigas em específico, bem como todas as pessoas de vontade, independentemente se são crentes ou não.
- Desenvolvimento: é onde aborda o conteúdo denso da doutrina social propriamente, subdividido em três partes.
– A primeira parte: organizada em quatro capítulos, são apresentados os fundamentos (bíblico-teológicos, patrísticos, eclesiológicos, epistemológicos e históricos) da doutrina social. No capítulo 1 é apresentado o desígnio de amor que Deus tem pela humanidade. O capítulo 2 aprofunda na missão da Igreja e sua doutrina social, que é chamada a dar continuidade ao desígnio de amor de Deus pela salvação integral da humanidade. O capítulo 3 trata da pessoa humana, sua dignidade e direitos/deveres; a centralidade da dignidade integral da pessoa humana é o primeiro grande princípio da doutrina social católica, e esse princípio é visto nesse capítulo específico. No capítulo 4, por fim, são trabalhados os outros princípios da doutrina social (destinação universal dos bens, bem comum, subsidiariedade, solidariedade e participação), os seus grandes valores (verdade, liberdade e justiça) e a sua “via mestra” (a caridade).
– A segunda parte: organizada em sete capítulos, são apresentados os temas “clássicos” da doutrina social. No capítulo 5 é trabalhado o tema da família, vista como a célula fundamental da sociedade, primeira realidade social decorrente da condição humana. No capítulo 6 é apresentado o tema do trabalho humano, tratando de sua dignidade, sua dimensão subjetiva e objetiva, de salário digno, direitos trabalhistas, previdência, direito de greve, direito de sindicalização, entre outros. No capítulo 7 é trabalhado o tema da vida econômica, lidando com o tema da produção humana, da função das empresas, do direito que o Estado tem de intervir na economia etc. No capítulo 8 é apresentado o tema da comunidade política, lidando sobre a necessidade da autoridade política, sobre o bem comum, o apreço da Igreja pela democracia, a crítica ao autoritarismo etc. O capítulo 9 trata da comunidade internacional, da relação entre os países, da cooperação entre as nações. No capítulo 10 é trabalhado o tema do ambiente, do cuidado com a casa comum, da salvaguarda do ambiente, lidando com a questão da ecologia e evidenciando o magistério social da Igreja sobre a realidade climática e socioambiental como um todo. E o capítulo 11 trata da promoção da paz, expondo o que a Igreja entende por paz e a necessidade de sua construção constante na comunidade humana.
– A terceira parte: organizada apenas no capítulo 12, trata da doutrina social católica e a ação pastoral da Igreja. Temos ali uma importante fundamentação das pastorais sociais, da questão da inculturação da fé, da presença da fé nas culturas, no dia a dia das sociedades, e dos diversos serviços sociais que a doutrina social pode prestar à pessoa humana nos campos da cultura, da economia, da política. Além disso, tem uma parte especialmente dedicada à missão dos fiéis leigos e leigas, que são grandes agentes da promoção da doutrina social no vasto campo do mundo secular, já que há certos “locais e circunstâncias em que só por meio deles a Igreja pode ser o sal da terra” (Lumen gentium 33).
- Conclusão: intitulada “Por uma civilização do amor”, a pequena conclusão vai sintetizar o espírito do documento, na perspectiva de fecundar a sociedade com o evangelho social. Ainda que as convicções religiosas não sejam compartilhadas por todas as pessoas do mundo, podem ser compartilhadas as decorrências morais do amor pelo ser humano, pela dignidade integral de cada pessoa, da igualdade de dignidade que há entre qualquer pessoa, de qualquer lugar, independente de sexo, classe social, país, cor de pele, independentemente de qualquer circunstância.
Como se pode ver, o Compêndio da Doutrina Social da Igreja nos ensina diversas questões sociais, tidas como absolutamente necessárias para que de fato consigamos construir uma civilização do amor. Tudo que a doutrina social da Igreja propõe é decorrente do desígnio de amor de Deus, da sua ação salvífica, da sua ação amorosa por toda a humanidade, por toda a criação, em vista de uma salvação integral. Se considerarmos o título do primeiro capítulo do CDSI e o título da sua conclusão, veremos que ele começa falando do desígnio de amor de Deus e termina falando da necessidade de promovemos uma civilização do amor.
É importante considerar também que o CDSI tem uma limitação temporal. Ele foi publicado em 2004, ainda no pontificado de São João Paulo II, que morreu em 2005. Isso significa que o CDSI não tem, obviamente, nenhuma contribuição do Papa Bento XVI (pontífice 2005 a 2013) e nem do Papa Francisco (pontífice desde 2013). Porém, o CDSI tem um complemento temporal, que é o Docat, uma versão do CDSI para os jovens, em forma de perguntas e respostas, publicada em 2016. Nele já têm contribuições da encíclica Caritas in veritate, de Bento XVI, e da encíclica Laudato si’, de Francisco. Todavia, já estamos em 2024, com muitas outras questões sociais para pensar, diante das quais a Igreja Católica deve sempre ter uma palavra de amor e de orientação.
Fica o convite para que possamos sempre mais conhecer, amar e praticar a doutrina social da Igreja. Ela é “magistério autêntico”, não é uma opinião qualquer da Igreja sobre algumas coisas. Sendo magistério autêntico, significa que a doutrina social é ensinamento oficial da Igreja, “que exige a aceitação e a adesão por parte dos fiéis” (CDSI 80). Ela é também um grande “instrumento de evangelização” (CDSI 67), de modo que “difundir tal doutrina constitui, portanto, uma autêntica prioridade pastoral” para os nossos tempos (Ecclesia in America 54).
Temos dado o devido valor à doutrina social da Igreja em nossas paróquias, comunidades e dioceses? Temos sido formados nesse rico tesouro doutrinal de nossa Igreja? Uma sugestão: façamos deste ano jubilar que vai começar uma ocasião especial para nos aprofundarmos no ensino social católico, alimentando concretamente a nossa esperança e o nosso compromisso na construção de uma sociedade digna do ser humano, verdadeira civilização do Amor, presença eficaz do Reino de Deus.